Quando ela saiu de casa, deixou um bilhete falando sobre “espaços
vazios”. Espaços vazios. Me deixou esse enigma... como se sabe, sobre os enigmas, ou você os decifra ou eles te devoram. Né?
Bom, em primeiro lugar, obrigada. Foi tudo que eu
sempre quis de você: que você me mostrasse coisas que eu não tinha coragem pra enfrentar ou que eu não pudesse ver. Que você me levasse para fazer coisas que eu pensava que nunca faria porque eu não tinha capacidade de superar minhas barreiras. O "porque eu acho que elas são insuperáveis" está implícito aí também - as convicções mais ou menos enraizadas. E aquele lance meio utilitarista também.
Teu maior espaço vazio quanto a nós, se você me permite explorar esse assunto, eu arriscaria
dizer que era o seu gosto por animais de estimação. (Se você não me permite, advogo sob o aspecto da “licença poética”. Tenho certeza que não trará
discussões porque você acredita nisso).
Simplesmente existe algo que me perturba muito sobre isso. Tem a ver com dependência, tem a ver mais ainda com dominação e carência que, juntas, justificam um
gostar a ponto de prender. Jaula, encarceramento, prisão. Tirar a liberdade de
interação com o mundo. Pensar naquela coisa errada – e só naquela coisa errada
que você fez. Mas eu bem entendo que uma relação de dominação não é necessariamente opressora, que a teia é complexa e que pode estar a favor da criação (salve, Foucault). Eu acredito na força criativa como uma nova forma de organizar o mundo a partir da definição daquilo que não queremos ser.
Sobre a prisão, acredito que envolva uma (falsa) idéia de necessidade e um
espírito de benevolência e caridade tão dignos de rechaço quanto a culpa católica. O que
eu digo pra culpa católica? Eu digo: errado para quem? Você espera que eu me
arrependa para ser perdoado? Eu não me arrependo, não cometi crimes, não fui desleal nem infiel. Sobre o passado, Inês é
morta. Remorso é desperdício de energia vital. Eu procuro agir de acordo com as minhas convicções, encarar os fatos e agir
de forma a conter danos.
Quanto ao espírito de benevolência para a pressuposta
necessidade do outro, eu entendo que você age de boa-fé, acreditando estar fazendo um bem ou até mesmo querendo salvar o mundo. Mas eu questiono suas motivações. Daquela parte do mundo que não é
bonita, eu realmente acredito que “everybody is looking for something / some of
them want to use you/ some of them want to be abused”. Ah, Sweet Dreams... eu, como boa cientista social, fico emputecida com a idéia de caridade, piedade
e outras formas de menosprezar e diminuir as capacidades dos outros seres.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=QUvVdTlA23w
Você, naturalmente, como todo bom observador, aprende olhando. E você sempre me
olhou bastante...até onde e quando eu não queria que você olhasse. Seu maior trunfo
foi me conquistar docilmente e não me esconder a fera que existia dentro de
você. Não. Pensei melhor: o meu maior
trunfo foi ver isso em você, como estou acostumada a balancear (muito bem, eu
diria) “o médico e o monstro”, dentro de cada um de nós.
Daquela parte do mundo que é bonita: eu quis te fazer pose,
pra conquistar tua poesia. Entre o médico e o monstro, está o artista. Sedutor. Criativo. Me vende a idéia de liberdade, ainda que uma liberdade produzida e preocupada em agradar o público. O drama, a performance...o truque. A ilusão e a contrapartida do esclarecimento. E você sabe que eu gosto de poesia... você sabe até do que eu não gosto nela.
Aí, de novo, eu, como boa cientista social, venho dizer que acredito
que a observação participante é muito interessante como método de pesquisa
(salve, Malinowski), mas fico extremamente incomodada com a idéia de um ator
antropólogo. Quer dizer, quem é você que quer falar de meus espaços vazios (ou
mesmo os cheios) sem experienciar na minha pele? Eis o que eu não gosto da
poesia: ela é assim, “meio farsa, meio fraude” (salve, carbono e amoníaco, rs).
Link: http://carbonoeamoniaco.blogspot.com.br/2013/07/cancao-do-quase-amor.html
(...)
A maior lição que você me ensinou e que eu poderia ter aprendido nesse ponto da
minha vida era olhar pros meus defeitos. (Às vezes eu acho que tenho vocação
pra ser escritora de biscoito da sorte. Às vezes eu dou risada disso e outras me reprimo por dar risada disso também.). Experimentando o que me serve; me
achando nas minhas críticas. Transitando entre o médico e o monstro.
Transitando livre e arbitrariamente entre a regra e a exceção – ai como me
prendem as regras e quanto me custam as exceções! Lidando com aquele
desconfortável lado “ator”ou “artista” dentro de mim também.
Na verdade, você acabou me ensinando a olhar pra mim. Isso, quando a gente se
conheceu, era o que eu precisava, realmente. Acontece que sempre achei que eu não
precisava de muita coisa – primeiro espaço vazio. Na verdade eu sempre achei
que a gente tinha coisas demais... coisas das quais não precisávamos. Então eu quis me desapegar. E aprendi com
dona encrenca os meus limites do desapego e da liberdade – ela sempre encontra
eles. Quanto vale a liberdade? (salve Cólera).
Um “salve”.
Especialmente para os invocados.
--
Eu me, sinto às vezes
meio pá, inseguro
Que nem um vira-lata
sem fé no futuro
Vem alguém lá, quem é
quem, quem seró meu bom
Dá meu brinquedo de
furar moletom
Porque os bico que me
vê com os truta na balada
Tenta ver, quer saber
de mim não vê nada
Porque a confiança é
uma mulher ingrata
Que te beija, e te
abraça, te rouba e te mata
Desacreditar, nem
pensar, só naquela
Se uma mosca ameaçar,
me catá, piso nela
(...)
Eu não tenho dom pra vítima
Justiça e liberdade, a causa é legítima
Meu rap faz o cântico dos loko e dos românticos
Vou pôr o sorriso de criança, onde for
Aos parceiros tenho a oferecer minha presença
Talvez até confusa, mais real e intensa
Racionais – Vida Loka
(parte I)