segunda-feira, 7 de março de 2016

Mulher, à beira de um ataque de nervos, e absurdos do cotidiano

Seguem alguns causos elencados aleatoriamente pela memória para breve reflexão:

Causo #1


Chefe dizendo que estava em balada com sua namorada. Constrangida com uma passada de mão em sua bunda, quis ir embora. Disse que ficou "COM CIÚMES" e que, como o rapaz estava cercado de amigos, esperou que estivesse sozinho para atropelá-lo com o carro na saída da balada. Na mesma conversa, dizendo-se freqüentador assíduo há anos de carnaval de trios elétricos em Salvador, conta que as mulheres usavam dois shorts, um por cima do outro, pois os homens tinham o costume de "enfiar o dedo" e as mais "desavisadas", conseqüentemente, se davam mal.

Causo #2

Boy dizendo que "as mulheres nunca faziam nada direito", se referindo às bandas de rock femininas.

Causo #3

Pai dizendo que eu deveria me acostumar quando, com aprox. 11 anos, disse estar incomodada quando homens mexiam comigo na rua. Disse me sentir um pedaço de carne ambulante, muito medo e muito ódio. Vontade de encher de porrada. Vontade de me vestir de preto, de freak, de homem - qualquer coisa que intimidasse e/ ou assustasse, ao invés de apetecer.

Causo #4

Amigo segurando o copo da namorada e dizendo "já chega para ela por hoje".

Causos #5

Padrasto dizendo para mãe não cortar o cabelo. Padrasto e amigo dizendo para eu não cortar o cabelo, pois gostava dele comprido, deixava "feminina".

Causo #6

Amigo / boy do cursinho gritando comigo porque minhas unhas estavam mal pintadas, demonstrando nojo e reprovação, pois eu parecia que "nem sabia ser mulher".

Causo #7

Estacionamento do Ibirapuera vazio, pela tarde, eu andando. Motoqueiro passa assobiando. Resposta automática no dedo médio, seguindo andando. Motoqueiro retorna, dirige devagar e me acompanha, olhando fixamente. Passa um carro com uma mulher dentro, observa a situação e diz "é foda, né?", mas não fica por perto. O dedo do meio já está baixo e o medo substitui boa parte da raiva. Ninguém mais passa e o motoqueiro contorna novamente e me acompanha. O capacete não ajuda. Apenas sigo, ou tento. Quando chego próximo ao auditório, ele estaciona à minha direita e paro para gritar muito com ele. Faço um discurso, sem nenhum ensaio e vomito coisas como "qual é o seu problema?", "o que é que você quer?", "quem você pensa que você é?", "não sou pedaço de carne exposto em açougue pra ser tratada dessa maneira" e, o mais bonito "se fosse a sua mãe ou a sua irmã andando na rua, você tinha respeito!". Ouço desculpas (!) e o cara segue. Encontro dois amigos e começo a chorar.

Causo #8

Ex-amigo me chamando de promíscua.

Causos #9

Carona na Raposo Tavares com advogado, idoso, ex proprietário de empresa, classe alta falida. Mão na perna e historinha de quem quer saber o que uma menina como eu faria com um homem da idade dele. "Para esse carro agora", "eu quero descer, para no acostamento". "Eu não te dei essa liberdade" e outros vômitos mais. Chefe abafando o caso no dia seguinte, fazendo piada, pois se tratava de amigo de longa data, talvez preocupado com minha reação. Eu dizendo que "assédio sexual era um assunto muito sério", muito chocada com seu posicionamento medíocre. Outros comportamentos medíocres se evidenciaram.

Causo #10

Passada de mão inconfundível no quesito intencionalidade no meio do bate-cabeça em show de banda punk autodenominada antifascista.

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Eu não queria que fossem casos de assédio, na maioria. Me dá nos nervos e no saco. Especialmente quando me dizem que eu tenho que me acostumar ou falam com normalidade perante coisas absurdas que são costumeiras. Queria entrar na subjetividade da coisa e falar, racional e tranquilamente, que o problema começa na educação. Que se trata de problema cultural, envolvendo a separação de homens e mulheres em seus condicionamentos "biológicos" a papéis masculinos e femininos, que geram muitos problemas sociais e individuais por conta das combinações possíveis entre identidade, gênero e sexo. E que uma parte é orientação e outra é o que não se escolhe; é o que se sente. Se reluta ou se assume, pois na ordem das escolhas está o racional e a ação. Quanto ao sentimento e ao sentido, cabe (auto) aceitação e respeito.

Queria pontuar a remanescência da tal coisa determinista, apesar de ter sido matéria e debate teórico do século XIX. Aí disseram que a mulher, por ter a possibilidade física (se não tiver nenhum problema de saúde, claro) de parir, tinha nisso aí a sua razão de existência. Wow. Pesado: função de servir de invólucro à perpetuação do DNA, o indispensável depósito do esperma. Éfe de xis de qualquer coisa e você não é o dono da equação. A máquina de xérox, que espalha mini-cópias versionadas, sem autenticação. Mas tem gente que se anima com essa idéia de tentar se projetar novamente no mundo. Muitos nomes e sobrenomes intencionados por aí.

Aí inventaram que, no passado tão-tão distante, o homem caçava e a mulher ficava na caverna (quê? de onde vem isso?). E disseram que a mulher deveria ficar em casa, que o mesmo homem proveria dinheiro e comida. E o arranjo todo é de dependência e limitação das faculdades, exigindo proteção da vida de uma parte mediante a agressividade natural do masculino, ainda que na pegada de divisão do trabalho a intenção seja boa de partilha de funções. E ela nunca tem a mesma capacidade do que ele, a não ser que seja coisa de mulher. E o pai nem desenvolve o cuidado, porque é coisa da mãe. E a mãe, frustrada, que se casa arranjada, obrigada ou por falta de possibilidade de ver ou querer coisas para si, também não desenvolve o cuidado, especialmente se vive no meio de ódio e já é fruto de violência. Ou cuida, mas só porque segue o protocolo cristão. E muita gente segue o protocolo. Ninguém ama, porque o amor é coisa dos iguais. E os filhos nascem, muitas vezes sem amor, sem vontade, sem prazer, sem intenção de ser. Mas se cumpre o protocolo e a função social.

Na minha cabeça tudo se mistura... o porquê eu não quis ser mulher, o porquê eu não quis ser mãe. O porquê eu não quis ser hétera. Porque eu ainda odeio rosa e todo o processo de idiotização que o "feminino" envolve. E o que é fofo, de repente é babaca, manjado, falso, mero protocolo automático, porque me coloca num lugar e num papel que eu não quero - nem para mim nem para você. Eu não quero papel, não quero ensaio, não quero espetáculo, nem platéia. Quero o freestyle das idéias e o "topo" do desbravamento curioso. Quero o "duvido" e o "por que não?". E o "porque sim" também. O "tamo junto" e o "é nóis".

É muito complicado. Falam de misandria e vou dizer que tem seu ponto. Aversão! Eu guardei muita violência, o que não justifica sua manifestação nesses termos, apesar de ser compreensível. Mas dá um nó na cabeça, aquela parte do que você sente. Não que eu quisesse sentir. O fato de eu não querer é inclusive boa parte do problema. E a gente sente muito e manifesta pouco e precisamos mesmo falar sobre isso. Como quebrar o maldito ciclo sem me quebrar e sem te quebrar?

Pessoalmente, queria desaprender e espalhar o desaprendizado. O reino das possibilidades; a tendência para a amplitude, e não para a restrição, pro confinamento. A capacitação do ser que se ambiciona melhor, que ousa a construção da igualdade plena mediante a desconstrução da desigualdade dada. O olhar que se enxerga e se esforça em se projetar no outro.

Não sentir ameaça de propriedade, do que é seu e só você pode usar ou permitir que outro use - o que é seu, afinal?  Mas empatia às dores, às violações, às castrações, aos condicionamentos. O querer para si precisava ser mais metafórico. Acho que gostaria mesmo que a carne fosse vida, e não tara. Que o corpo fosse menos tabu e mais totem, de repente. Que pudéssemos ser, por inteiro, e não pela metade. Que, mais completos, pudéssemos acrescentar mais aos outros ou ajudar na retirada de pesos desnecessários. Estabilizar ou equilibrar nossa penca balança.

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Não foi breve, mas tudo bem, o tempo vale. Por menos memória, menos espelhos e mais horizontes.

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